quinta-feira, 23 de setembro de 2010

UM PAR DE SAPATOS PARA ANTERO QUIJANA

 Sapatos de Van Gogh


“Não há memória para aqueles a quem nada pertence”.
(Ecléa Bosi)

Sentou-se exausta no sofá e olhou para a irmã como se dissesse: “desisto”. Mas era o que realmente haveria de ser feito, desistir. O pai, Antero Quijana, seria enterrado descalço. No entanto, na cidade vizinha, os sapatos que as filhas e a viúva procuravam ainda estavam na janela de Rosa Branca do Carmo, que não fazia a menor ideia de que os pés de Antero precisavam deles. Era um par de sapatos sérios, de tons sóbrios, um típico exemplar da presença masculina que o pequeno quarto de Rosa Branca do Carmo nunca tivera, e ela explicava, serenamente, a quem perguntava: “quando cheguei, já estavam aí e aí os deixei”.  O pior é que a dona da pensão também dizia o mesmo, ou seja, os sapatos de Antero Quijana não tinham memória.
Porém, devido à gravidade do assunto, com o advento do automóvel e do telefone, o resto ainda estaria por vir, fizeram a filha mais nova bater, naquela mesma noite, à porta da estudante:
— Vim buscar os sapatos de meu pai. Devolva-os
Fechou a porta na cara da filha mais nova. Ao voltar, estava com o par de sapatos nas mãos, transfigurada na mulher mais bonita da cidade. Quantas noites não sonhara escolhendo peça por peça da roupa, cada dobra da saia, o laço da  blusa, a lingerie, as cores da maquiagem, o cheiro do perfume para encontrar ele, o dono do par de sapatos sérios de tons sóbrios?!
Rosa Branca do Carmo chorou, ininterruptamente, 18km. Era mais nova que a filha mais nova, fazia o último ano no colégio de freiras onde era soprano no Coral da Virgem Poderosa, e escrevia, para pagar seu aluguel, contos eróticos sob o pseudônimo andrógino de C.C.
Antero Quijana era um homem de um metro e oitenta e cinco, não era mais moço, mas também não aparentava a idade que tinha. Era o único varão da família. Perdera o pai ainda menino, fora criado pela mãe e pelas três irmãs, as quais, também como ele, que tinha quatro filhas, não geraram filhos homens e, mesmo fora do casamento, as amantes nunca lhe deram um filho. Conta-se que as filhas de suas filhas tiveram outras filhas, e essas geraram mais meninas, as mais belas mulheres, as quais se casaram com estrangeiros ricos e espalharam mais fêmeas pelo Ocidente e pelo Oriente. Ele mesmo contava que, por gostar demais de mulher, seu sangue era feminino e fresco, era quente e arredio, seu deitar era morno e manso. Assim, lhe nasciam mulheres aos montes e lhe chegavam mais para servi-lo.
Rosa Branca do Carmo, ao adentrar a casa, não sabia que encontraria Antero Quijana coberto de flores e com as mãos postas. As outras mulheres se entreolharam sem saber de onde ela vinha, nem porque estava tão bem vestida, imoralmente linda, com os sapatos do falecido na mão.
Fora o homem mais bonito que vira em toda sua vida, os cabelos grisalhos, bem arrumados, a pele branca sem sinal de morte e os pés descalços.
— “Teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo impetuosamente pelas encostas de Galaad. Teus dentes são como um rebanho de ovelhas… Tua face é como um pedaço de romã… Há sessenta rainhas, oitenta concubinas e inúmeras jovens mulheres, uma, porém, é a sua pomba, uma só”.
— Louca! — gritou a segunda filha — Calce os sapatos de meu pai e vá embora!
Como todo corpo que morre, as extremidades de Antero Quijana incharam. Antero seria enterrado descalço. Rosa Branca do Carmo, assim como veio, saiu pela porta da frente com os sapatos nas mãos sob os rumores das outras mulheres. A viúva, pela fresta da porta, divisou-a cruzando a varanda, o vestido de veludo azul, os cabelos negros, a pele alva sem tempo.
Mesmo depois de enterrado, Antero Quijana arrastou o amor de Rosa Branca do Carmo com ele. Sentada no meio-fio, com os sapatos nas mãos, conversava sozinha, mas não era tida como louca. Diziam que aquilo passaria com o tempo, afinal, não se morre mais de amor. Mais tarde, assumiu o pseudônimo andrógino de C.C. e foi embora para a Capital. Casou-se. Dizem que escreveu novelas para o rádio e a televisão, mas não se sabe quais ao certo, pois, cuidadosamente, sempre modificava seu nome para que, como os sapatos de Antero, não lhe restasse memória.C.

4 comentários:

Fernanda Lym disse...

Eu adoro esse conto. :)

Organização disse...

Muito bonito. Perfeita a escolha da epígrafe. Foi publicado?

Ideias Adulteradas disse...

Não foi publicado não, postei aqui com medo do anonimato...e eu gosto muito desse conto.

Fernando de Souza disse...

Nunca me esqueci desse conto.
Ele me remete a um início de coisas, uma gênese.
Porém, não é gênese, é fase já amadurecida que antecede uma outra ainda desconhecida pra mim.
Mesmo assim, gosto de pensar nele como em uma época de encontros, de saudades de um tempo então presente, de tão precioso que foi.