sábado, 4 de setembro de 2010

Defenestrando Sonhos

Foto: M.Lopes
João, personagem de João Cabral, pergunta: “Que intimidade existe maior que a do sonho?”. João é uma intertextualidade da “Quadrilha” de Drummond, é literatura sobre literatura. E meu sonho com o velho Carlos também era desejo de ser. O poeta morreu em 1987 no Rio de Janeiro de onde escrevo agora.  Mas apesar de possuir lembranças muito antigas, a morte dele é um buraco na minha memória. Mas porque lembrar, se eu vivia tão longe, do outro lado dos acontecimentos? Os poemas de Drummond entram em mim quando meus ombros já não suportam mais, ele sabe bem o que. A morte do leiteiro, a rosa crispada, as tintas da antemanhã, o suicídio de Joaquim, o último dia do ano, o tempo partido, os homens partidos.
O sonho veio como todos os sonhos, com portas que se abrem para paisagens improváveis e tempos anacrônicos. Ele saía por entre as prateleiras da biblioteca. Não ousei dizer-lhe que parecia com o meu avô, afinal, eu sabia o que uma biblioteca representava para ele, além de ser um santuário de livros. Ele pegou  minha mão e descemos uma longa escada. Chegamos num quarto pequeno com paredes descascadas. No centro, uma pequena cama. Não trocamos  palavra. As paredes, a cama, o chão foram desaparecendo. Era mar.
Muita coisa aconteceu depois desse episódio onírico, mas a sensação do sonho nunca foi esquecida, era como acordar tendo nas mãos toda a certeza da minha própria vida. Senti medo. Não comprei mais os livros do poeta e até esqueci os que tinha no fundo do armário.
Já ouvi muito sobre ele aqui no Rio. História dos amigos, das amantes, das bibliotecárias, das jornalistas, das revistas, das cartas, dos manuscritos, dos sábados, do homem que nunca soube da minha existência, que era apenas homem e poeta.
Um dia, sem medo, fui visitá-lo em Copacabana. Uma estátua de bronze. C.

3 comentários:

Tércia Montenegro disse...

Querida C.,

Lindo, o seu sonho: íntimo, mas completamente possível para todos os que amam poesia.
Saudades!
T.

Ideias Adulteradas disse...

Texto muito bem elaborado, Ca!;))
Fernanda L.

aluisio martinns disse...

teu sonho me deixou em doce realidade. um lugar mais perto de mim, uma distância íntima e poética que me intima a degustar o improvável, graças...
grato