terça-feira, 26 de outubro de 2010

Meus Livros

Ana Miranda*

 Foto: Adriana Vichi

Existe em minha cabeça uma estranha geografia que se refere ao mundo em torno de mim, um mundo físico mas de significados infinitos, essa geografia surgiu do meu hábito de viver trancada com meus livros, esses livros dispostos numa serena ordem um ao lado do outro representam a minha mente como um mapa a um país, se fecho os olhos as prateleiras de livros se acendem dentro de minha cabeça como se minha cabeça fosse também um aposento forrado de estantes de livros em que cada um deles é uma porta para um mundo, todos são posicionados de acordo com um sistema lógico, se me recordo de um desses livros meu olhar vai diretamente ao lugar em que se encontra, raras vezes algum se perde mas quando acontece caio numa espécie de desespero, basta olhar à distância um deles para receber sua influência, uma secreta ligação, feito as ondas do mar em relação à lua, às vezes sinto um apelo irresistível como se um deles me chamasse e, seja quando for, levanto da cadeira, retiro o livro da estante e folheio para ouvir o que tem a dizer, esses livros determinam meus sentimentos, meu entendimento do mundo, são o mapa de minha alma, cada um representa uma região, um lugar onde estive e onde ainda estou, há entre eles os meus preferidos, ficam separados numa das prateleiras, rabiscados desde a primeira página, onde se encontram palavras manuscritas, lembranças, ideias, pétalas secas, madeixas, preces, são meus livros, mas tenho sempre a sensação de que não me pertencem, sou dona deles mas apenas uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, vivo trancada numa sala onde livros vivos sorriem, choram, zombam, ensinam, atraiçoam, respiram, livros que passam de papel para papel, às vezes sou tomada de uma tristeza por não saber o que lhes acontecerá depois da minha morte, mas sei que eles, como as pessoas, têm seu destino, alguns meu filho levará, outros, um neto, outros ainda serão vendidos num sebo, com meu nome, bilhetes, segredos, receitas, folhas de outono, gotas de café, que tornarão triste um leitor sensível, os demais deixarei de lembrança para amigos, mas todos existirão mais do que eu, uns existirão eternamente.
 *In Literatura em minha casa - Vol. 2 Crônica e conto, São Paulo: Companhia das Letras.

Um comentário:

Sujeito Oculto disse...

o verdadeiro amigo do homem, para mim, é um livro.