quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Os Livros e os Lugares

Os livros evocam os lugares – de um modo direto, pela descrição de continentes, países ou interiores domésticos. É assim que normalmente aprendemos a viajar por uma geografia de letras, antes de imergir no mundo propriamente dito. Podemos nos tornar íntimos da Sibéria, por exemplo, sem nunca termos ido lá: bastam certos contos russos, extremamente amados, para criar a sensação de familiaridade. 

 
Óbvio que a realidade, assim chamada, será sempre um tanto diferente – mas, para os leitores, os relatos às vezes são tão intensos, que se tornam mais verdadeiros que a própria paisagem. Se esta um dia é encontrada ao vivo, pode ser vista como uma cópia da ficção, e não o contrário.

Entretanto, para além deste aspecto, há os lugares que ambientam a leitura e que, de algum modo, colam-se à experiência de uma história. Falo dos ambientes escolhidos para o ato de ler: circunstanciais ou ritualísticos, confortáveis ou improvisados... Em mim, o cenário funciona feito moldura, acompanhando a memória. Assim, A paixão segundo G.H. lembra um passeio de ônibus ao sol, o trajeto que eu sentia no corpo mas não na mente, preocupada em fixar (apesar dos solavancos do veículo) as palavras da Lispector. O evangelho segundo Jesus Cristo me transporta à casa materna, à brisa na varanda fresca, onde lia me balançando na rede. Crime e castigo me lança aos primeiros dias de universitária, descobrindo a biblioteca, assim como Se um viajante numa noite de inverno – mas este, do Calvino, li ao ar livre, num banco do Bosque de Letras.

Tive inúmeras experiências assim, todas afetivas e algumas curiosas, como aquele episódio do domingo na casa de praia de certa amiga. Havia muita gente convidada, desconhecidos que adoravam churrasco e música duvidosa. Tentei disfarçar o ânimo com umas conversinhas básicas, mas em pouco tempo me escondi num canto à sombra, para abrir um livro (carrego sempre algum na bolsa – em qualquer bolsa, mesmo nas de praia). Em minutos, fui descoberta pela amiga, magoada porque concluía que eu não estava gostando da casa. Ao contrário, respondi: agora é que eu comecei a gostar. O livro era Diário de um fescenino, do Rubem Fonseca, e tinha uma capa mais azul que a água da piscina...

Na maioria do tempo, porém, leio em espaços bem comuns: no meu quarto, na sala dos professores ou até no trânsito, conforme confessei em crônica anterior. Esses lugares, de tão frequentes, sofrem uma espécie de neutralização. Não costumo carregá-los na memória da leitura. Esta acontece como uma refeição, cujo sabor depois recordo, mas sem atentar para o restaurante onde ocorreu. É cômodo que seja assim, pois não teria condições de tornar marcantes todos os livros que já li, junto com todos os ambientes em que eles foram lidos.

Resta-me, portanto, eleger uns poucos que irão comigo para hotéis e consultórios médicos, para filas de teatro ou cafeterias. Nessa lista, há vários que são estrategicamente diminutos: os livros de bolso, que têm a propriedade da discrição e foram feitos para nos salvar de palestras aborrecidas e reuniões compulsórias. A esses, presentes em todos os momentos burocráticos da minha história, dedico – além do amor – a maior gratidão.
 
 
Tércia Montenegro - Escritora, fotógrafa e professora da Universidade Federal do Ceará
literatercia3@gmail.com



Referência: 
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/09/29/noticiaopiniaojornal,2047250/os-livros-e-os-lugares.shtml e no meu blog http://literatercia.blogspot.com/

Tema Benjaminiano

Benjamin

No semestre passado, li um texto do Agamben, de cujo título não me recordo, que retomava “O Narrador” do W. Benjamin. Naquele momento, quando Agamben falava que a nossa sociedade carencia de "experiência", além de acusá-lo de louco, pela minha bruta falta de experiência em textos filosóficos, nada me fazia dissociar o termo do senso comum, como prática e ciência. Neste semestre, sob a enxurrada dos 70 anos da morte de Benjamin e sob o efeito alucinógeno da disciplina “Visões da Literatura a partir de Walter Benjamin Benjamin”, estou às voltas com “Experiência e Pobreza” do próprio, que, aliás, tinha larga experiência em ser pobre, no sentindo de ter um poder aquisitivo baixo.
(Ver: http://ideiasadulteradas.blogspot.com/2010/09/em-breve-defenestrando-walter-benjamin.html )

Finalmente, acredito (com muito otimismo) que compreendi a que Benjamin e, posteriormente, Agamben se referiam ao falarem da nossa falta de experiência, se referiam, à prática de uma tradição que humanizava o homem: “Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativa de países longínquos, diante da lareira, contada a pais e netos”(p.114). Benjamin observou que essas ações de experiência começaram a se perder entre os anos 1914 a 1918 com a “experiência da guerra”, diante do silêncio dos que voltavam dos campos de batalha. Além desse silêncio, a "experiência estratégica da guerra" trouxe novas formas de experiência: a fome, a inflação, o desemprego e a desmoralização do ser humano. Outra “nova forma de miséria” deixada pela guerra foi também o desenvolvimento da técnica que, segundo Benjamin, irá se sobrepor ao homem: “Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge uma nova barbárie” (p.115).
No entanto, “barbárie”, por sua vez, também tem o significado fora do senso comum, adquirindo o sentindo de “impulso criativo”. Sobre isso escreve Benjamin: “o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela [a barbárie] o impulsiona a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita” (p.116). Benjamin enumera alguns bárbaros criadores, na Física, por exemplo, Albert Einstein; na Arquitetura, Le Corbousier, Adolf Loos e Walter Gropius com a criação da Bauhaus; na Arte, os cubistas, as figuras de Paul Klee, que ele admirava bastante, além dos personagens visionários de Paul Scheerbart. Todos com um ponto em comum, alguns para o bem e outros para o mal, a inspiração na Matemática, ou seja, no racionalismo.

É interessante perceber nesses três conceitos utilizados por Benjamin de “experiência”, “pobreza” e “barbárie” sua visão romântica e nostálgica dos valores pré-capitalistas ao lamentar perda das traições orais e a tragédia do progresso para o mundo, uma influência do judaísmo, vinda de sua ligação com G. Scholem e da posição que Benjamin assumiria, a partir de então, como “judeu autoconsciente”. Por outro lado, percebi também a sensibilidade de Benjamin para além do horizonte de expectativa de sua época, ao trabalhar com o conceito de “barbárie”, quer dizer, com as implicações que o progresso nos traria, como por exemplo, a nossa automatização ou desumanização, chegando a comparar o ideal do homem contemporâneo ao camundongo Mickey com quem “a natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente e, aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apena como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectivas de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta de na árvore se arredonda como a gôndola de um balão”(p.118 e 119).

Certamente, além da presença do  amigo G. Sholem há no ensaio “Experiência e Pobreza” a presença do amigo T. Adorno (ou não). Há nele também a auto-referenciarão de Bejnamin que, mais tarde irá repetir o conceito de experiência em “O Narrador”. Pode-se prever aqui também “a perda da aura”, tema desenvolvido em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” de 1935/36.
C.

Referência: BENJAMIN, Walter. "Experiência e Pobreza" in_______. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. p.114-119. SP: Ed. Brasiliense, 1994.

domingo, 26 de setembro de 2010

COM SEU ESTILO MONÓTONO, A LISTA É O TESTEMUNHO MAIS PRECOCE E CATEGÓRICO DE UMA PAIXÃO.






Alan Pauls






Fazemos listas desde sempre, desde antes de escrever. Nenhum garoto precisa conhecer o alfabeto ou as regras de concordância para enumerar o que quer em seu aniversário. Basta ele desejar e compreender que algo tão despótico quanto o desejo requer algum tipo de lógica. É essa a função da lista: colocar certa ordem no desejo. Uma ordem básica, simples, rudimentar, mas absolutamente decisiva. Porque, sem ela, o garoto (ou seja: nós) se perderia. Ficaria à mercê de duas imensidões oceânicas: a do seu próprio desejo (por definição ilimitado) e a de tudo o que o mundo tem para lhe oferecer.
Elementar e ao mesmo tempo milagrosa, a lista é a primeira maneira que temos de não naufragar no mundo e de não aceitá-lo como ele é. Serve para recortar o mundo, capturá-lo, deixar uma marca que fale de nós nele. Em sua meia língua, o menino que faz aniversário pede: "Um triciclo, um Woody, um chiclete, uma bola, um dragão que cospe fogo". Essa lista impessoal é o mais pessoal que existe, porque é a intersecção entre seu desejo e o repertório interminável de presentes que espreitam no mundo. Não é por nada que vivemos fazendo listas. Listas de compras, de convidados, de trabalhos a cobrar, de dias de prisão que faltam ser cumpridos, de filmes a ver, de livros para as férias, de amigos com os quais gostaríamos de tomar um drinque. Nesse gênero seco, mecânico, burocrático, há uma humanidade que comove.



A lista dá voz e forma ao que há, ao que se necessita, o que se ambiciona, o que se realizou, e, nesse sentido, parece condensar quatro ou cinco núcleos de experiência nos quais a espécie toda poderia se reconhecer: desejo, memória, registro, necessidade, sonho.

PAIXÃO


Com seu estilo desafetado, monótono, de repartição pública, a lista com frequência é o testemunho mais precoce e categórico de uma paixão. O crítico de cinema Serge Daney dizia que o verdadeiro cinéfilo não é apenas aquele que vai muito ao cinema, desenvolve gostos sofisticados e é capaz de alçar-se em armas em nome de um diretor -é sobretudo aquele que passa a experiência do cinema para a experiência da lista: aquele que não para de sistematizar sua pulsão de fã em rankings e outras práticas nas quais confluem o ardor da paixão e a rotina contável.


A suntuosa espetaculosidade do filme de Spielberg ("A Lista de Schindler") não nos fará esquecer o que a lista de Oskar Schindler foi, o que descobriram aqueles que a encontraram na mala que, em 1974, quando Schindler morreu, reunia o que restava da sua fortuna: uma folha com 1.200 nomes escritos.



TUDO E NADA


Ou seja, um arquivo: algo que é tudo e nada ao mesmo tempo. Como é tudo e nada ao mesmo tempo a lista de desaparecidos apresentada há dois meses por uma testemunha em Tucumán, Argentina, durante o julgamento de dois dos responsáveis pela repressão ilegal movida sob a ditadura de 1976-83. São nove páginas de tamanho ofício escritas a máquina, com os nomes de 293 pessoas. Ao lado de 195 se leem as iniciais DF (disposição final), um eufemismo para dar nome ao crime. A lista não é nada: não diz quem eram, o que faziam ou porque nunca voltaram a ser nem a fazer o que eram e faziam antes de os terem inscrito nessa folha. Mas é tudo, porque é o primeiro dado oficial das técnicas repressoras que aparece em quase 30 anos, o primeiro que -produzido pelos próprios militares, com suas máquinas de escrever- comprova que a repressão foi sistemática e metódica. A tal ponto que, como uma inversão macabra das listas apaixonadas do cinéfilo, os exterminadores não puderam resistir à tentação de registrá-la em uma lista.




Alan Pauls, escritor argentino, é autor de O Passado (Cosac Naify),entre outros.
OBS: Artigo especial para  A Folha, São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2010.

Porque Defenestrar?

 Memória (Magritte)


Cada janela pode ser aquele ponto cego que globaliza, numa ilusão de ótica, a totalidade. [...] Janelas do Windows que se abrem sobre a superfície chapada do mundo
Renato Cordeiro Gomes




quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Confissões de C. a propósito de "Um Par de Sapatos..."

"Um Par de Sapatos para Antero Quijana"  foi meu primeiro conto escrito depois da publicação  de Eu vou Esquecer você em Paris (2007). Deparei-me com uma voz narrativa completamente modificada. Que horror! Mas, pensei que deveria ser por causa do tempo que passei sem escrever. Porém, a pedido do amigo Henrique Araújo, enviei uns contos para publicar no jornal O Povo, o que  trouxe a confirmação traumática da perda da minha voz .
Foto de C.C. e Arte de Marco Antonov.

Confesso que ainda estou me acostumando com a idéia de não estar muda, mas calada. Hoje, o estranho  é  Eu vou Esquecer você em Paris  e não " Um Par de Sapatos...". É como se vê numa fotografia antiga, no entanto,  são as palavras a imagem congelada .

Chamada para participar do Projeto Por mais Leitura-PML, no Dragão do Mar, em 2009 (será?), tirei "Um Par de Sapatos..." da gaveta, como se dissesse, vou assumir! Apresentei-o  como um conto de amor,  algo que  remetia às imagens poéticas dos sapatos de Van Gogh e do sapatos de Mario Quintana na janela da pensão onde morava em Porto Alegre. Tive uma boa recepção do público, afinal, todos procuramos o amor!

No entanto, ao apresentá-lo a um novo leitor-filósofo, tive minha armadilha desmontada. Não, aquele não era um conto de amor, mas de "esquecimento". O esquecimento  com todas as suas implicâncias. Será o "esquecimento"  meu medo, minha voz?

Defenestro, aqui, então "Um Par de Sapatos para Antero Quijana".

C.

UM PAR DE SAPATOS PARA ANTERO QUIJANA

 Sapatos de Van Gogh


“Não há memória para aqueles a quem nada pertence”.
(Ecléa Bosi)

Sentou-se exausta no sofá e olhou para a irmã como se dissesse: “desisto”. Mas era o que realmente haveria de ser feito, desistir. O pai, Antero Quijana, seria enterrado descalço. No entanto, na cidade vizinha, os sapatos que as filhas e a viúva procuravam ainda estavam na janela de Rosa Branca do Carmo, que não fazia a menor ideia de que os pés de Antero precisavam deles. Era um par de sapatos sérios, de tons sóbrios, um típico exemplar da presença masculina que o pequeno quarto de Rosa Branca do Carmo nunca tivera, e ela explicava, serenamente, a quem perguntava: “quando cheguei, já estavam aí e aí os deixei”.  O pior é que a dona da pensão também dizia o mesmo, ou seja, os sapatos de Antero Quijana não tinham memória.
Porém, devido à gravidade do assunto, com o advento do automóvel e do telefone, o resto ainda estaria por vir, fizeram a filha mais nova bater, naquela mesma noite, à porta da estudante:
— Vim buscar os sapatos de meu pai. Devolva-os
Fechou a porta na cara da filha mais nova. Ao voltar, estava com o par de sapatos nas mãos, transfigurada na mulher mais bonita da cidade. Quantas noites não sonhara escolhendo peça por peça da roupa, cada dobra da saia, o laço da  blusa, a lingerie, as cores da maquiagem, o cheiro do perfume para encontrar ele, o dono do par de sapatos sérios de tons sóbrios?!
Rosa Branca do Carmo chorou, ininterruptamente, 18km. Era mais nova que a filha mais nova, fazia o último ano no colégio de freiras onde era soprano no Coral da Virgem Poderosa, e escrevia, para pagar seu aluguel, contos eróticos sob o pseudônimo andrógino de C.C.
Antero Quijana era um homem de um metro e oitenta e cinco, não era mais moço, mas também não aparentava a idade que tinha. Era o único varão da família. Perdera o pai ainda menino, fora criado pela mãe e pelas três irmãs, as quais, também como ele, que tinha quatro filhas, não geraram filhos homens e, mesmo fora do casamento, as amantes nunca lhe deram um filho. Conta-se que as filhas de suas filhas tiveram outras filhas, e essas geraram mais meninas, as mais belas mulheres, as quais se casaram com estrangeiros ricos e espalharam mais fêmeas pelo Ocidente e pelo Oriente. Ele mesmo contava que, por gostar demais de mulher, seu sangue era feminino e fresco, era quente e arredio, seu deitar era morno e manso. Assim, lhe nasciam mulheres aos montes e lhe chegavam mais para servi-lo.
Rosa Branca do Carmo, ao adentrar a casa, não sabia que encontraria Antero Quijana coberto de flores e com as mãos postas. As outras mulheres se entreolharam sem saber de onde ela vinha, nem porque estava tão bem vestida, imoralmente linda, com os sapatos do falecido na mão.
Fora o homem mais bonito que vira em toda sua vida, os cabelos grisalhos, bem arrumados, a pele branca sem sinal de morte e os pés descalços.
— “Teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo impetuosamente pelas encostas de Galaad. Teus dentes são como um rebanho de ovelhas… Tua face é como um pedaço de romã… Há sessenta rainhas, oitenta concubinas e inúmeras jovens mulheres, uma, porém, é a sua pomba, uma só”.
— Louca! — gritou a segunda filha — Calce os sapatos de meu pai e vá embora!
Como todo corpo que morre, as extremidades de Antero Quijana incharam. Antero seria enterrado descalço. Rosa Branca do Carmo, assim como veio, saiu pela porta da frente com os sapatos nas mãos sob os rumores das outras mulheres. A viúva, pela fresta da porta, divisou-a cruzando a varanda, o vestido de veludo azul, os cabelos negros, a pele alva sem tempo.
Mesmo depois de enterrado, Antero Quijana arrastou o amor de Rosa Branca do Carmo com ele. Sentada no meio-fio, com os sapatos nas mãos, conversava sozinha, mas não era tida como louca. Diziam que aquilo passaria com o tempo, afinal, não se morre mais de amor. Mais tarde, assumiu o pseudônimo andrógino de C.C. e foi embora para a Capital. Casou-se. Dizem que escreveu novelas para o rádio e a televisão, mas não se sabe quais ao certo, pois, cuidadosamente, sempre modificava seu nome para que, como os sapatos de Antero, não lhe restasse memória.C.

sábado, 18 de setembro de 2010

Compensação

Eu sei, estou sumida. É que entre a correria para arrecadar doações para o Projeto Ler para Crer, e o trabalho com as revisões que me foram confiadas (Amém!), pouco tem sobrado tempo para as produções literárias em si. Prometo tomar mais cuidado com isso, porque quando acontece de ver alguns contos publicados em uma revista, como a conceituada Germina Literatura, ah!, amacia o ego, sabe? Dá um consolo! Faz compensar um pouco as horas que gastei diante da tela de um computador digitando, escrevendo, podando, reconstruindo texto e linguagem, moldado um derriére quadrado - de tanto ficar sentada-, indo dormir pensando se a trajetória emprestada para a história ficou eloquente, se eu como autora consegui sumir pra que os personagens e a história aparecessem.. Claro: ainda modificaria coisinhas minúsculas nos textos publicados (nunca, NUNCA me peça para eu fazer "prova" dos meus próprios textos, ou difícil será eu parar de mexer neles). Mas, engraçado... Quando os reli, e recordei que já faz um tempinho que eles nasceram, a sensação que tive foi a de que eles já saíram do berço e começaram a caminhar de mãos dadas com outros leitores por aí. Não me cabe mais a missão de aprisionar textos autorais no berço da minha insegurança.

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Fernanda L.

Bem-querer

Quando adentro este espaço, e vejo as postagens da Carmélia, parece-me como alguém que mantém uma casa bem cuidada, florida e com vida, para receber os mais distintos convidados com o carinho e respeito que eles merecem. Não, não é "babação" por ela não. É bem-querer mesmo.
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Fernanda L.

Salmo Perdido

"Salmo Perdido", poema de Dante Milano






Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.

Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.

O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.

Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.



C.

Recordando Dante Milano

Foi o “amigo escritor” quem falou sobre Dante Milano. Talvez eu tivesse uns 12 anos. A maioria dos nomes pronunciados pelo “amigo escritor” eram imediatamente “resgatados” das conversas e logo estavam nas minhas mãos: Jorge Luís Borges, Franz Kafka, Raduan Nassar, James Joyce, Leon Tolstoi, Sousândrade, Luigi Pirandello, mas, Dante Milano ficou pelo caminho, ao ponto de lhe atribuir uma biografia imaginária, confusa,  talvez um amalgama das outras vidas que já li.  Para mim, trava-se do pseudônimo de um poeta nascido no século XIX, maldito, execrado, mas que, como todos os gênios, morreu na obscuridade.
Hoje, no centro da cidade, a procura de Reinaldo Arenas e Elias Canetti, meus tristes exilados, encontrei Dante Milano:
Dante ao meio
Nada de maldito nem execrado. Dante Milano, identidade civil do poeta, nasceu no Rio de Janeiro, final do século XIX, em 1899, e morreu em 1991, em Petrópolis. Era recluso. Não vivia, como disse João Cabral, de fazer vida literária, vivia em poesia. Lançou o primeiro livro em 1948, contra a sua vontade, foi pego de surpresa por um amigo que lhe levou os originais.  E, apesar de sua autosaboagem, o livro ganhou o Prêmio Filipe de Oliveira, algo correspondente ao atual Prêmio Jabuti. Foram feitas algumas reedições em 1958, pela Agir; 1971 pela Sabiá e em 1979  o Núcleo Editorial da UERJ com a Civilização Brasileira editaram toda a sua obra (guardada), poemas inéditos, a prosa dispersa em jornais e parte das traduções. Porém foi escritor de apenas um livro.
Apesar de ser contemporâneo do  Modernismo, o poeta já  estava pronto, não se rendendo à efervescência  da Semana de Arte Moderna. Dante Milano tem formação clássica, buscando inspiração  em Horácio, Virgílio e Dante de quem traduziu três cantos do Inferno. O discurso milaniano cultiva a poética do "pensamento emocionado" dos poetas metafísicos ingleses do séc. XIX e se firma sobre o tripé da morte, do amor e do sonho. 
Agora, preparo-me para leitura da poesia de Dante Milano, sem pressa,  até que a "terra, com suas garras, nos rasgue a máscara".
C.


Referência:
MILANO, Dante. Obra Reunida. Sérgio Mtargão (org). Ivan Junqueira (apresentação e bibliografia). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Defenestrando Obsessões II



Era meio-dia de agosto, enquanto bordava com as amigas, sentiu que alguém chegava a sua porta. Não precisou olhar para saber quem era. " Estava gordo, o cabelo tinha começado a cair e já precisava de óculos para ver de perto", disse-me. "Mas era ele, porra, era ele". Assustou-se porque sabia que ele a estava vendo tão decaída como ela o via, e não acreditava que tivesse dentro tanto amor quanto ela para se conformar. (...) Bayardo San Román deu um passo à frente (...)

- Bem, disse, aqui estou.

Levava uma mala de roupa e outra mala igual com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera [sem quartel durante 17 anos]. Estavam ordenadas por suas datas, em pacotes amarrados com fitas coloridas, e todas sem abrir.



(Gabriel García Marquez in Crônica de uma Morte Anunciada).


C.

Infância K.










"A foto foi tirada num desses ateliês do século XIX, que com seus cortinados e palmeiras, tapeçarias e cavaletes parecia um híbrido ambíguo de câmara de tortura e sala do trono.O menino de cerca de seis anos é representado numa espécie de paisagem de jardim de inverno, vestido com uma roupa de criança, muito apertada, quase humilhante, sobrecarregada com rendas. No fundo, erguem-se palmeiras imóveis. E como para tornar esse alcochoado ambiente tropical ainda mais abafado e sufocante, o modelo segura na mão esquerda um chapéu extraordinariamente grande, com largas abas, do tipo usado pelos espanhóis. O menino teria desaparecido nesse quadro se seus olhos incomensuravelmente tristes não dominassem essa paisagem feita sob medida para eles, e a concha de uma grande orelha escuta tudo o que se diz."
(W. Benjamin sobre Kafka In "Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte")

C.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Defenestrando Obsessões

A Bruxa, poema de Carlos.
A Bruxa 

Nesta cidade do Rio 
De dois milhões de habitantes 
Estou sozinho no quarto 
Estou sozinho na América. 

Estarei mesmo sozinho? 
Ainda há pouco um ruído 
Anunciou vida a meu lado. 
Certo não é vida humana, 
Mas é vida. E sinto a Bruxa 
Presa na zona de luz. 

De dois milhões de habitantes! 
E nem precisava tanto... 
Precisava de um amigo, 
Desses calados, distantes, 
Que lêem verso de Horácio 
Mas secretamente influem 
Na vida, no amor, na carne. 
Estou só, não tenho amigo, 
E a essa hora tardia 
Como procurar amigo? 

E nem precisava tanto. 
Precisava de mulher 
Que entrasse nesse minuto, 
Recebesse esse carinho 
Salvasse do aniquilamento 
Um minuto e um carinho loucos 
Que tenho para oferecer. 

Em dois milhões de habitantes 
Quantas mulheres prováveis 
Interrogam-se no espelho 
Medindo o tempo perdido 
Até que venha a manhã 
Trazer leite, jornal, calma. 
Porém a essa hora vazia 
Como descobrir mulher? 

Esta cidade do Rio! 
Tenho tanta palavra meiga, 
Conheço vozes de bichos, 
Sei os beijos mais violentos, 
Viajei, briguei, aprendi 
Estou cercado de olhos, 
de mãos, afetos, procuras 

Mas se tento comunicar-me, 
O que há é apenas a noite 
E uma espantosa solidão 


Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem. 

sábado, 11 de setembro de 2010

Palavra de Esquimó

Desenho: Alexandre Benoit


"Por você deixarei a neve e esquiarei na areia, não escreverei grafites sobre o gelo, terei sotaque do Ocidente e roupas de verão, meus dentes não amaciarão outra pele senão a sua, meu cheiro se dilui em sua lavanda limpa; assim como o esturjão perde o caviar perderei meu nome, esquecerei o rito do iglu, a mulher e a presa, verei o degelo como água de meu sexo, não darei ao  estranho o que é seu no fim da noite, ficarei na sua cama toureando o fogo, apagarei de minha boca a isca e o peixe, deixarei livres os cães do trenó, tentarei esquecer o exílio do gelo, hibernaremos juntos enquanto o inverno castigar."

(GUERRA, Wendy. Nunca fui Primeira-Dama.SP: Saraiva, 2010).


C.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Defenestrando Lila Donws

   Por volta de 2001, quando a era dos downloads atingia ferozmente o mercado da música, para o bem ou para o mal, diante dos meus olhos distraídos, encontrei na liquidação de uma loja de cd’s, de cujo nome não me lembro, mas que também deixou de existir, o álbum La Línea da mexicana Lila Donws. Na capa, Lila, de traços fortemente indígenas, olhava para o horizonte. Viam-se também os colares e a vestimenta artesanal, indígena. Pensei que seria mais uma “imitadora” da Frida Kahlo, mas na música? Frida também cantava? Todo delírio é possível quando se trada da febre da moda. Porém, na capa de trás do disco, uma dedicatória espantosa sobre a foto de um “mestiço” escalando o famoso muro que separa o México dos Estados Unidos e, embaixo, um vira-lata observando o movimento: “dedicado a todos los migrantes y a los difuntos que han muerto cruzando la línea.”

A voz de Lila é grave e triste, mesmo nas faixas mais “alegres”, quando canta na língua "maia", aliás, a língua de sua mãe, Ana Sanchéz, de origem mixteca; já o pai da cantora, chamava-se Allen Downs e era um antropólogo de origem britânica. Lila Donws deixou o estado mexicano de Oaxaca, onde nasceu, para estudar canto e antropologia nos Estados Unidos. Foi cantora de ópera, hippie, artista de rua, fez de tudo um pouco até ficar conhecida mundialmente pela participação na trilha sonora do filme Frida (2002).  C.

OBS: No dia 24 de agosto, deste ano, 2010, foi noticiado o massacre de 72 imigrantes que tentavam cruzar la línea, entre eles, quatro brasileiros.